Tenho um amigo de peixes que quer o oceano.
Quando eu assisti o filme “Soul”, uma cena me marcou: aquela em que o músico, que finalmente consegue tocar com a estrela que sempre sonhou, sai da boate e se mostra insatisfeito, como se ainda faltasse algo. Ele, que esperara tanto tempo para realizar aquele sonho, se sentia - ainda - incompleto. A cantora sai do estabelecimento, olha pra ele e, após um breve diálogo, conta a ele a história do peixinho que passou a vida querendo o oceano. Mas quando ele chega lá, pergunta: “Ué, cadê o oceano?”, ao que lhe é respondido: “Peixinho, você está lá”. Mas ele logo diz:
- Isso? Isso é água. O que eu quero é o oceano.
Não vou conseguir lembrar da cena por completo, mas era mais ou menos assim. Ou era mesmo assim, já que tudo pode ser inventado na poesia. Acho que licença poética é ser livre nas palavras. Tem algo no mundo mais bonito que isso?
Pois bem. Ontem eu estive com esse amigo. E inevitavelmente pensei na efemeridade da vida e em beber menos álcool. Tem gente que nos indaga coisas assim: vão desde a razão da nossa existência no mundo até o que você comeu no café da manhã. Não há meio termo. E veja bem, você deve guardar bem essas pessoas.
Naquele bar, o segundo da noite, eu estava completamente sóbria. Tinha feito exames que denunciaram insulina alta no corpo e me proibiram de ingerir coisas ruins para evitar algo pior. Estou proibida de engolir sapos também, mas não sei se vou conseguir. De toda forma, eu estava somente com minha garrafa de água, também já tinha comido em casa pra não lanchar porcaria na rua e mantinha acesa no coração uma alegria imensa de estar viva. Talvez por causa do energético que tomei por dez reais, o mesmo preço da mesma bebida com cachaça. E eu pedi sem cachaça. Mas não houve desconto, não entendi. Bom, esqueçam essa parte. Vamos dizer que eu fiquei apenas na água. Foi quando aconteceu.
O fato não importa tanto, mas sim os sentimentos que se sucederam. Meu amigo jogara na mesa, para todos nós, um tópico que questionava a existência e o propósito do amor em uma situação cotidiana muito específica. Ponto. Foi o que bastou para que eu me alterasse levemente. Virei o copo de cerveja que não podia beber e disparei: “Não concordo”. Ele riu. Cruzou os braços, me desafiou a contestá-lo. Teceu algum comentário sobre eu ser da poesia e do amor e, por isso, achar bizarra a afirmação dele. “Você não pode”, eu disse, “você não pode ignorar a construção social do amor. Tudo é sociedade. Minto. Tudo é uma questão social. E se você ignorar as bases sociais das discussões, não faz sentido. Não é aplicável. Seja fé, ciência ou até mesmo poesia”. Talvez nada do que eu disse fizesse sentido, mas eu me senti um soldado defendendo sua ideologia mais preciosa. Ele riu feliz. E ali eu entendi: ele concordava comigo. O amor permeia muita coisa.
No final, ele tinha apenas reproduzido a frase de uma psicóloga próxima a ele para ver nossa reação. Pude ver seus olhos de respeito e carinho. Resolvi então quebrar o clima: “Você até me beijaria agora né, amigo?”, ele concordou e riu. Outra pessoa disse: “Mas tudo é sexo?”. Eu ri, irônica, dando um gole final na cerveja e disse: “Ele não gosta de psicologia? Então Freud explica”. Saímos dali às 5 horas da manhã.
Falamos horas sobre amor, relações, expectativas, frustrações, realidade, vontade. Muita vontade. E há de se respeitar o desejo. Aliás, a noite teve diversas fases: fases distintas umas das outras, fases complexas. Acho que os encontros que fazemos na vida são o que trazem a gente pro sentido dela. Não há como contestar. Um bicho sozinho é um bicho. Mas bicho com outro bicho é um universo inteiro. Isso seria verdade? E essa verdade serve para um peixe?
Lembrei do meu peixe que morreu quando eu era criança. Ele tinha a minha cor favorita, azul. Gostava de alimentá-lo, gostava do cheiro daquela ração. Quase me dava vontade de comer também. Mas ele não olhava em meus olhos, não me amava. Um dia ele morreu e minha mãe disse que ele foi pro veterinário. Só percebi a mentira anos depois, já adulta. Perdoei porque foi por amor.
Em um momento, depois de lágrimas de medo, meu amigo abaixou a cabeça sobre a mesa, mexeu nos cabelos como se fosse enlouquecer. E eu queria perguntar pra ele: “meu amor, você ainda quer o oceano?”, mas só pude dizer:
- O que você quer?
Ao que ele prontamente respondeu, me olhando nos olhos:
- Eu? Eu quero ser livre.
cadeia pra todos os piscianos
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a liberdade é esse infinito muito grande, tão grande que a gente nem vê